Sonhos Lúcidos parte IV

De repente eu estava nessa cidade ao anoitecer. Lembro de muitas ladeiras e eu só lembro de andar nas subidas. 
Eu chegava com um amigo, que eu não lembro o nome e esse logo sumiu no meio de um povo que encontramos.
Os postes pequenos e metálicos eram iluminados por chamas amarelas. As ruas estreitas de paralelepípedo e as janelas alongadas de cores variadas já me davam a dica, mas quando eu vi muitas charretes e nenhum automóvel é que me dei conta. Aquele não era o meu tempo. Estava em outra época.
As pessoas cagando sem ocupação trajavam vestes formais, enquanto outras bem ocupadas usavam roupas sujas e com buracos.
Entrei em muitas casas onde alguma festa acontecia. As mais ricas serviam vinho com queijos e luz de velas. Já as mais pobres tinha samba, fogueira e uma bebida que ardia quando descia. A fuligem ardia nos olhos.
Numa dessas, fiz um novo amigo, seu nome era Candinho. Moço que sorria para todo mundo, conhecia todas as pessoas ali. Era fino, e se vestia todo alinhado naquele paletó branco e chapéu. As moças sorriam ao olhar para ele. Os homens mais velhos o cumprimentavam com satisfação e os mais novos o contemplavam com admiração. Era bem aceito em todos ambientes. 
Quando fomos apresentados, foi uma simpatia mútua. Nos demos bem e ele se apegou a minha companhia naquela noite. Bebemos as mesmas coisas e cantamos as mesmas canções. Eu lhe contei que não era dali e nem sabia onde era aquele lugar, não sabia como tinha ido parar lá.
Ele tragou o cigarro e sorrindo disse:
-Todo mundo vem de algum lugar, importante é que agora está aqui! A vida sempre se repete, sempre continua.
Não sei quanto tempo passei nesse lugar, o tempo passava diferente. De repente eram dias. Aqui fora foi o tempo de um sonho, isso eu sei.
Em outro momento estávamos em uma festa de samba e uma briga aconteceu. Os homens começaram a  brigar por uma mulher. Eu fiz movimento para tentar separar, mas Candinho me impediu silenciosamente. Na verdade, ninguém interviu, todos olhavam hipnotizados os dois se estudando e rodando como galos naquele terreiro. Um deles era enorme e vestia um paletó preto e o outro de branco era mais baixo e magro. O mais forte estava levando a melhor como era óbvio. Até o momento em que o menor é arremessado ao chão, e de lá, saca um canivete. Meu olhos saltaram de apreensão, enquanto os outros apenas olhavam imóveis, impossíveis. A batucada tocava, o homem maior se esquivava enquanto o menor estocava o ar com veias vermelhas nos olhos. 
E nesse me virei para Candinho. Ele sorria, era o único que sorria. Mais do que isso, meu novo amigo estava torcendo por aquilo. Suas expressões indicavam seu desejo por sangue.
O primeiro golpe que acertou foi de raspão na testa. Respingou nos rostos de quem estava mais perto na roda. Ninguém ficou horrorizado, não vi ninguém se afastando. Ficaram como estavam diante do horror. 
O homem sangrando passou a mão na testa e ficou enfurecido com todo aquele sangue escorrendo nos olhos e partiu para cima do menor. No impacto levou uma estocada na barriga, mas arremessou o menor por cima das mesas fazendo-o perder o chapéu e sangrar na parte de trás da cabeça.
Procurava o canivete no chão. Não o achou, de repente olhei para o seu oponente e lá estava cravado entre o ombro e o peito, causando tonturas no homem. O que estava no chão chorando começou a rir com sangue nos dente e avançou. Tirou a lâmina e depois enfiou de novo. Depois tirou e enfiou na barriga e fez isso mais algumas vezes até o homem grande desabar com o rosto retorcido pela dor. 
O menor limpou o canivete no paletó de sua vítima e saiu sob olhares silenciosos que apenas abriram caminho para ele sair de lá. Nós ficamos lá vendo um corpo espumando sangue pela boca. 
Vieram alguns homens e o levaram embora para o samba recomeçar. Candinho começou a dançar agarradocom a mulher bonita que começou a briga entre os homens. 
Eu saí de lá. E andando na garoa da noite procurando um jeito de sair daquela cidade. Andei por uma eternidade e só encontrava mais ruas ladeira acima, ladeira abaixo. Postes acesos e casinhas fechadas. Cães latiam de longe, e fora isso, só ouvia o som dos meus sapatos contra o chão. Tudo se apagou e eu acordei numa cama, quanto escuro com paredes azuis emboloradas. Cheiro de café e urina vindo de algum lugar lá fora. 
É uma sensação que não sei descrever com palavras. Eu não sei onde estou, mas é como se sempre fosse familiar. É como se fosse estranho, mas eu sei onde estou. Numa pensão batata para solteiros.
A porta do quarto é aberta bruscamente e Candinho aparece todo afoito. 
-Vamos lá seu preguiçoso! Hoje é o grande dia. Não podemos perder nenhum segundo, estou com o sentimento que será melhor que ontem. Vai logo tomar um café!.
No instante seguinte já estávamos em alguma rua desfilando para quem passava. Candinho era o príncipe de toda aquela gente. Distribuía simpatia para as pessoas passando, acenava para as moças bonitas que o esperavam nas janelas de seus quartos. Tocava no chapéu abaixando em respeito aos homens mais velhos e ajudava as mulheres mais velhas com suas compras.
Me apresentava para todos com quem estávamos na conversa. Em algum momento me senti seu animal de estimação. Era constrangedor, situação incômoda, mas não queria ainda escapar.
Chegamos no barbeiro, era como eu soubesse que faríamos uma parada ali, só não lembro de ter sido avisado. O homem era um careca idoso com cara de sisudo, o que mudou quando viu Candinho, seus olhos brilharam. Tinha mais quatro homens lá. Dois esperando corte e dois lendo jornal. Ambos saíram quando chegamos. Nos cumprimentaram e foram pela porta. Ficamos só nós três e Candinho foi convidado a se sentar. Pegou um jornal, cruzou as pernas e foi perguntado se seria o corte de sempre. Ao confirmar que sim o trabalho começou. 
Candinho lendo jornal perguntou sobre a filha do homem, a qual o nome teria dito, mas passados alguns dias, eu já não me lembro. E o barbeiro fez silêncio parando completamente os movimentos. Segundos depois adentra o salão baixando sua sombrinha uma moça loira, parecia ter uns 20 anos, de cabelos encaracolados com anéis perfeitos por baixo do chapéu branco. Ela tinha olhos azuis profundos e pele tão macia quanto algodão. Nem olhou para mim, não me cumprimentou e foi em direção a Candinho.
-Ah, aí está ela, a bela Heleninha! Exclamou meu amigo.
Ela por sua vez beijou-lhe o rosto sem dizer nenhuma palavra. Enlaçou seu pescoço e beijou sua nuca. O barbeiro só parou de lado sem falar e sem se mexer. 
Candinho então pergunta ao homem por sua esposa. O barbeiro então olha seriamente nos olhos e depois de um silêncio volta a posição que estava antes e da porta dos fundos da barbearia surge uma mulher de cabelos castanhos em coque muito firme. Vestido azul e olhos azuis acinzentados. Ela então sorri para Candinho e se aproxima. Não olha para mim, não fala comigo, vai direto no meu amigo na cadeira coloca a mão direita entre as calças dele e faz movimentos. O barbeiro nada faz, nada diz. A jovem vai até sua frente, levanta o vestido branco com detalhes amarelos bem pálidos e senta-se em seu colo. O barbeiro se move para a entrada e fecha o estabelecimento. Tudo escurece e eu só acordei em outra manhã naquele mesmo quarto.
Era um novo dia, estranhamente acordei aflito e com o coração apertado. Eu não tinha ideia se era por algo que estava para acontecer, não sabia se era por alguma coisa que tinha acontecido. Não tinha vontade de levantar, mas também não conseguia ficar deitado com tudo aquilo acontecendo aqui dentro.
No momento seguinte estou sozinho na rua, vestido a caráter para uma festa. O sol já estava se pondo. O chão estava molhado de chuva, meu sapato deslizava no pavimento liso da rua.
Eu sabia meu destino, de alguma forma eu soube no momento que acordei.
Meu caminho levava direto para um casarão, um palacete no final daquela rua. Tudo se iluminava mais conforme eu avançava. Os postes, algumas luzes no chão dos jardins, as lâmpadas na fachada da casa.
Os portões negros adornados com anjos prateados e demônios dourados se abriram para mim e no instante seguinte eu já estava no salão principal sendo acolhido por um criado sem expressão naquele, gravei na memória o rosto velho com pontas brancas de barba por fazer.
No salão, lustres de diamante brilhavam como estrelas amarelas radiando sorrisos milionário, que bebiam espumantes, conversavam com felicidade e observavam os jovens casais deslizando ao som da valsa, como eram perfeitos aqueles rostos se contemplando. O mundo logo seria todo só deles.
E lá de cima, observando a todos veio Candinho. Descia as escadas com autoridade, mas com graça e carisma. Ele também olhava a todos. Ele se virava e todos se viravam também. No fim da escada, ele andava e todos andavam também. Ele chegou no centro do salão, a música cessou e ele parou, em seguida todos pararam também. 
Candinho agradeceu a presença de todos, agradeceu o prefeito por ceder sua residência para esse momento. Agradeceu o juiz pelo carro, agradeceu um fazendeiro pelo buffet. 
Quando terminou os agradecimentos e piscou três vezes. A música voltou, os dançarinos retomaram os passos e cada um foi conversar com quem estavam antes. 
Candinho veio até mim e me abraçou. Agradeceu minha presença em separado dos outros. Perguntou se eu tinha gostado da recepção. 
-Isso tudo é por você! Não é toda noite que recebemos alguém como você por aqui.
Percebi as pessoas olhando para mim. As autoridades, os jovens, os funcionários, toda aquela gente rica me aplaudindo.
-Amanhã você vai estar em outro lugar, em outro tempo. Não queremos isso. Eu não quero isso. É um pedido para que fique com a gente! Mas não responda agora, vamos aproveitar a noite e depois você me diz.
Eu já estava dançando entre os jovens, bebendo entre os ricos e por conversando com os velhos. Era uma música que nunca vou conseguir reproduzir, não vou me lembrar, se perdeu. Era uma coisa linda, de fazer chorar. Eu senti alegria entre aquelas pessoas naquele lugar, essa era uma época que eu queria viver.
Foi quando ele entrou como louco no salão. Louco não, alucinado. Quem? O barbeiro. Reconheci aquele senhor pela navalha e a careca brilhando. O único que não usava trajes de gala. 
-Morte ao demônio! Você é o demônio que destrói famílias. Apodrece nossa cidade.
Avançava na direção de Candinho apontando a navalha. Ninguém entendia. Eu sabia que era de Candinho que o velho falava. Candinho também sabia. Eu estava de olhos vidrados. Candinho muito calmo. Os outros estavam assustados e confusos. 
Não havia nenhum segurança na festa. De modo que ninguém tentava pará-lo. Mas não precisou. Sua filha e sua esposa surgiram com vestidos brancos e adornados com ramos de pequenas flores brancas e cabelos cheios de brilhantina ou outra coisa assim. 
A filha pedia para o pai largar a lâmina e ir embora o quanto antes. O pai praticamente nem a enxergava, mas parou apontando para Candinho e dizendo pragas. A esposa estava imóvel na frente, mas também chorava. Implorou para seu marido deixar aquele lugar o quanto antes. A filha se jogou aos seus pés e olhou para Candinho com a maquiagem borrada. E ele olhou para sua mãe que tirou uma arma da bolsa, apontou e deu um único disparo no peito do seu companheiro. A fumaça subiu e o cheiro de pólvora ficou no ar. As pessoas se aproximaram para ver o corpo no chão. A filha gritava segurando a mão do pai. A esposa só chorava.
-Você é o demônio seu Candinho! Esbravejou o velho com dificuldade, por causa do sangue escuro que pulava da garganta para os lábios. Ninguém consegue ver isso, mas eu vejo!
Foi a primeira vez que vi uma reação adversa no olhar do meu amigo. Depois disso o barbeiro ferido ficou com olhar vidrado, pegou a navalha e passou levemente em seu pescoço. Pareceu um carinho, mas logo em seguida surge um filete vermelho e depois o sangue escorre e ele morre em segundos fazendo sons de afogado.
Candinho fez isso, pela expressão dele, de alguma forma, ele era o responsável por tudo o que estava acontecendo.
Ele se aproxima da filha para retirar a navalha e num surto, a jovem lhe atinge na testa com ela. O sangue desce pelo rosto. No  mesmo instante, as pessoas no salão gritaram com as mãos na cabeça e em seguida aparentavam séria confusão. Menos a viúva do barbeiro, as lágrimas desciam nas bochechas levando a maquiagem escura para baixo deixando uma superfície como enlameada. 
Ela levantou a arma em direção a Candinho e ouvi o som dela ser engatilhada. Ela tentou, se esforçou para puxar o gatilho, mas seu esforço teve resultado nulo. Seus braços tremiam muito enquanto se encurvavam em direção a sua própria cabeça. 
Era tudo muito rápido e ao mesmo tempo nenhum detalhe me escapava. Pensei muito rápido para pegar a filha pelo braço e dizer para sairmos dali. 
Enquanto corríamos pelo jardim senti a compulsão de olhar para trás. E foi minha perdição nesse roteiro.
-Me partiu o coração meu amigo, não esperava isso de você! Candinho tinha um olhar de abandonado que me cortou por dentro.
Corremos pelas ruas desesperados, havia névoa no ar encobrindo parte do caminho adiante.
Chegamos no meu quarto e essa moça logo foi dizendo que não poderíamos ficar ali, pois ele via tudo e sabia de tudo. Disse também seu nome, mas isso eu não consigo lembrar. Que olhos azuis, que rosto lindo! Em nada aquele olhar parecida o de malícia que apresentou na barbearia outro dia.
Claro que eu obedeci em sair dali com ela. Fomos para outra pousada e a possibilidade de passarmos a noite juntos me deixou nervoso. 
Não deu nem tempo de ficar excitado e ela tornou a dizer que ali também não era seguro. Eu tentei acalma-la dizendo que ninguém sabia daquele lugar. E ela disse me olhando bem séria:
-Não há lugar aqui que o demônio não conheça, não há pessoa aqui que resista a ele!
-Então saímos de lá no meio da noite sob o olhar desconfiado dos funcionários da casa.
Ela disse que precisávamos sair daquele lugar, ir para a estação e pegar o trem. Só assim ele não alcançaria.
Fizemos isso. Corremos até a estação e permanecemos lá até o o primeiro trem passar pela manhã. Compramos passagem para qualquer cidade bem longe. 
O trem passava vagaroso por edifícios cheios de entalhes de anjos e adornos de flores. Grades metálicas que faziam formas enroladas nas extremidades. 
Tudo ali queria me dizer como eu estava deslocado do nosso tempo. Que eu estava em outra época e eu precisava voltar.
Estávamos fora daquela cidade, fora do domínio de Candinho. A moça ainda olhava aflita para os lados. Murmurava algo sem mexer muito os lábios. 
O trem parou e eu ouvi perfeitamente o que ela dizia:
-Ainda não é o bastante! E de novo. E de novo. E de novo. Até ficar bem alto. 
Eu tentei acalma-la, mas ela estava apavorada.
-Você não entende, ele tem olhos em todos os lugares! Ele tem olhos sobre todo mundo! E tudo mundo faz o que ele quer!
As pessoas a nossa volta não tinham reação nenhuma àquela parada fora da estação. Continuavam levando duas vidas. Quando entrou um homem de bigode usando uniforme da companhia de trem.
-Façam seu trabalho! Ele disse a dois garotos que entraram correndo no vagão.
Os dois estavam armados com espingardas e ninguém demonstrou nenhuma reação.
A moça me puxou pelo braço e saímos pela porta do outro lado. Corremos por becos escuros e escadarias entre vielas.
Até que encontrei uns galpões abandonados e decidimos nos esconder lá.
Minha companheira não gostou nada da ideia. Estava apavorada.
Eu tentei dizer a ela que ali era seguro, já tínhamos despistado os garotos. E dava para se esconder sob a mobília. Nunca nos encontrariam ali.
E ela me respondeu:
-O moço teve Candinho como companheiro todo esse tempo e não percebeu que ele é o demônio desse mundo. Todo mundo aqui pertence a ele. Ninguém escapa! Você era o próximo a ser dele pra sempre, assim como eu e meus pais. E se você pertence a ele uma vez, então ele sempre vai saber onde te encontrar.
Dentro daqueles olhos brilhantes de súplica eu vi uma sombra, um reflexo, um sorriso. Era Candinho lá dentro. Ele tinha me encontrado.
Uma grande porta metálica de correr foi puxada fazendo todo barulho possível. Enquanto eu me escondi, a mulher já sabia o que estava por vir e correu se apresentando para a morte. Depois de dois estalos secos, eu a vi caída no chão e seu crânio destruído. Ver toda aquela beleza arruinada em segundos, me fez entrar em desespero.
Eu sabia que eram dois atiradores adolescentes lá fora. Minha ideia era fazer com que gastassem toda sua munição e aí eu iria para cima dos dois. Eu era bem mais forte que ambos juntos.
Tentei me fazer como alvo por alguns segundos e me esconder logo para fazê-los atirarem a toa.
Colocava a cabeça a vista e depois tirava. Eles atiravam, uma, duas vezes. Isso deu certo por três vezes. Eles estavam do alto de um muro com as armas apontadas para mim e seus olhos concentrados sem nenhuma emoção. Eu não entendo até hoje porquê eles não invadiam o galpão e acabavam com aquilo. Talvez estivessem me segurando para a chegada de Candinho e esse sim finalizaria o trabalho. 
Bom, nunca vou saber, já que não quarta vez que coloquei a cabeça para fora, de surpresa apareceu um terceiro atirador. Era o cobrador de bilhetes do trem todo uniformizado. Logo atrás da porta. Senti apenas o tranco do projétil entrando no crânio. Depois nada mais.
Acordei suado, assustado. Precisava de um cigarro e algo para escrever tudo bem rápido para não esquecer.



























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